Após primeiro ciclo de financiamentos com inadimplência zero, novo grupo de agricultores terá acesso a crédito para custeio do cacau no sul da Bahia

Após primeiro ciclo de financiamentos com inadimplência zero, novo grupo de agricultores terá acesso a crédito para custeio do cacau no sul da Bahia
SAF – sistema agroflorestal. Foto de Tereza Santiago, agricultora de Dois Riachões, beneficiada pelo crédito

Oito meses depois de um bem-sucedido ciclo de concessão de crédito a pequenos cacauicultores do sul da Bahia, o chamado CRA Verde – lançado em dezembro do ano passado para cerca de 150 produtores – vai atingir mais 19 agricultores da região, graças ao nível zero de inadimplência da primeira leva de financiamentos. Ao todo, R$1,1 milhão foram concedidos até agora. Parte desse valor já foi paga de volta pelos produtores, permitindo que novos entrem na operação. Até agora, a média de empréstimos está entre R$ 6 mil e R$ 7 mil reais.

O CRA Socioambiental, como ficou conhecido, é um Certificado de Recebíveis do Agronegócio. Neste caso, o instrumento financeiro foi estruturado a partir de um modelo blended finance, isto é, que combina capital de mercado e capital filantrópico. Os aportes de filantropia assumem parte do risco, elevando a atratividade desse mecanismo para investidores tradicionais, mas que objetivam impacto. Ela também está lastreada em contrapartidas socioambientais, desde a manutenção da Mata Atlântica em pé até a garantia de não ter nenhum tipo de trabalho infantil nas propriedades. Do ponto de vista econômico, a expectativa é que a produtividade das áreas financiadas cresça 30% em dois anos, e que produtores familiares possam, no médio prazo, se tornar fornecedores de cacau de qualidade para fabricantes de chocolate premium. Esses e outros indicadores estão sendo monitorados desde a concessão do recurso, e os primeiros resultados serão divulgados em março de 2022.

Roberto Vilela, diretor executivo da ONG Tabôa, explica porque esse desenho financeiro é o mais adequado à realidade dos pequenos produtores da região. A Tabôa foi responsável pela operação junto ao Instituto Arapyaú, Instituto humanize, à Gaia securitizadora, ao escritório Tozzini Freire Advogados e à consultoria WayCarbon. “Estudamos vários modelos [de financiamento] e optamos pelo CRA por ser um mecanismo regulado pela B3 [bolsa de valores brasileira], e que serviria como um modelo replicável e escalável. Estamos mostrando ao mercado que a operação é segura, que tem alta adimplência, e que tem impacto socioambiental positivo”, diz Vilela.

A área produtiva beneficiada com o crédito chega a 720 hectares – e quase 61% dela opera com base na produção agroecológica, isto é, aquela que leva em conta a diversidade de culturas. Outro destaque importante diz respeito ao perfil dos produtores beneficiados: 75% deles são assentados, e quase 40% das famílias beneficiadas pelo crédito são lideradas por mulheres.

Após primeiro ciclo de financiamentos com inadimplência zero, novo grupo de agricultores terá acesso a crédito para custeio do cacau no sul da Bahia
Tereza Santiago, agricultora do assentamento Dois Riachões

É o caso de Tereza Santiago, agricultora do assentamento Dois Riachões, em Ibirapitanga-BA. No ano passado, ela teve acesso a crédito pela primeira vez, tomado de forma coletiva com outros agricultores por meio do CRA. O recurso foi logo direcionado para a melhoria de seu sistema agroflorestal agroecológico (SAFA) com cacau cabruca – um modelo que além do cacau cultivado sob a sombra das árvores nativas da Mata Atlântica é enriquecido com outros cultivos geradores de renda, sob práticas agroecológicas. A partir de técnicas de manejo, replantio, poda e limpeza, Tereza conseguiu elevar o adensamento de sua área, isto é, ter mais espécies se desenvolvendo em um mesmo espaço. Ela passou de 500 para 900 pés de espécies frutíferas e lenhosas intercaladas com o cacau, por hectare. A agricultora conta com seis hectares, e divide a área coletiva do assentamento com outras famílias. Técnica em agroecologia, Tereza produz, anualmente, uma média de 47 arrobas de cacau por hectare. Além do cacau, ela colhe hortaliças, feijão, milho e batata como culturas de subsistência.

Após primeiro ciclo de financiamentos com inadimplência zero, novo grupo de agricultores terá acesso a crédito para custeio do cacau no sul da Bahia
Delineia Santos, agricultora do assentamento Dois Riachões

Delineia Santos, também assentada em Dois Riachões, viu no CRA Verde a chance de investir na própria área sem se preocupar com condições de pagamento que não coubessem no seu bolso. Ela trabalha com a produção de cacau, hortaliças, bananas e aipim há trezes anos, mas ainda não havia acessado qualquer fonte de financiamento para a produção. “Na verdade, eu até tinha medo das questões dos pagamentos. Daí, eu ficava preocupada de fazer. Mas veio a Tabôa e me proporcionou uma condição que coube no meu orçamento e deu perfeitamente para gente comprar o que nós precisávamos para usar na roça e ter uma condição boa para poder fazer o pagamento das parcelas”, conta Delineia. Com os recursos novos, a agricultora conseguiu investir em poda, adubo, mudas e máquinas para a manutenção dos quatro hectares da roça de cacau. Com os investimentos feitos, a expectativa é que sua produção cresça nos próximos meses.

Assistência técnica impulsiona mudanças

Os recursos do CRA Verde têm andado de mãos dadas com atividades de assistência técnica rural no sul baiano – demanda historicamente mal assistida no país, sobretudo para pequenos produtores. Marcio Gabriel Chaves, coordenador da Tabôa, explica que a maioria dos agricultores da região já tentou acessar algum tipo de crédito sem sucesso, por conta da dificuldade de obter documentos que certifiquem a ocupação da terra. Ainda segundo ele, há outras formas de atestar a posse da área, como a visita técnica. Dados do Panorama da Cacauicultura no Território Litoral sul da Bahia (2015-1019), do Instituto Floresta Viva, mostram que 63% dos produtores de cacau da área afirmaram nunca ter acessado qualquer tipo de crédito para a produção, e que 58% têm escolaridade limitada ao ensino fundamental incompleto – destes, 11% nunca estudaram, fator que pode dificultar ainda mais o acesso aos modelos de crédito existentes. Os dados ganham ainda mais relevância quando se observa que o cacau representa 79% da renda dos estabelecimentos rurais da região – e que 50% desses imóveis têm renda mensal abaixo de R$ 1.600.

“Crédito sem assistência técnica não funciona, e assistência técnica sem crédito também não”, explica Chaves. A complementaridade das duas frentes, diz ele, é o que viabiliza os ganhos de produtividade. “A assistência técnica garante a aplicação do recurso naquilo que foi projetado. 100% dos nossos produtores fizeram o que foi desenhado”, afirma.

Após primeiro ciclo de financiamentos com inadimplência zero, novo grupo de agricultores terá acesso a crédito para custeio do cacau no sul da Bahia
João Café, produtor do assentamento São João

João Café, produtor do assentamento São João, também em Ibirapitanga-BA, sabe bem disso. Ele enfrentou por muitos anos o desafio de fazer o cacau prosperar na sua área. Sem recursos e sem acompanhamento técnico, foi prejudicado pela vassoura de bruxa, praga que pode levar uma lavoura a perdas da ordem de 90%. No ano passado, ele acessou o CRA para investir em melhorias em seus 4,5 hectares. Adubação, poda e replantio do cacau estavam na lista de tarefas. Ele também aplicou parte do recurso na implementação de uma estufa para beneficiamento de cacau de qualidade, com capacidade de 30 arrobas. Em paralelo, recebeu o apoio técnico da Muká Plataforma Agroecológica – iniciativa da Tabôa junto à Rede Povos da Mata e ao Instituto Ibiá. Agora, o cacau de qualidade de João Café pode ser comercializado com valor superior ao do cacau convencional. “Quem acessa crédito e aplica, garante resultados!”, ressalta.

Segundo as projeções da Tabôa, até o fim de 2021, 44 novos agricultores terão acessado o CRA Sustentável – ante os cerca de 150 que já acessaram o recurso de 2020 para cá. “O sistema se retroalimenta: quando os produtores pagam as parcelas em dia, isso se transforma em crédito novo para outros produtores”, diz Grazielle Cardoso, analista sênior de projetos do programa Desenvolvimento Territorial do Sul da Bahia do Arapyaú.