Com o tema “Imaginário, concreto e possibilidades”, a quarta plenária de Uma Concertação pela Amazônia, realizada em 7 de maio, jogou luz sobre a presença negra na região ao longo dos últimos quatro séculos. A associação entre escravizados africanos e floresta Amazônica dificilmente habita o imaginário do brasileiro, mas há registros que evidenciam a trajetória de líderes negros na região do Grão-Pará – ela abarcava, à época do Brasil Colônia, boa parte do mapa atual da Amazônia.
O panorama histórico da influência negra na floresta foi apresentado pela antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz, professora da Universidade de São Paulo (USP). Ela explica que a escravidão negra se tornou mais evidente na Amazônia no século XVIII, quando homens e mulheres trazidos da Guiné e de regiões da África Central, como o Congo, foram deslocados da costa baiana (por onde entravam no Brasil) para o Maranhão. As lavouras de cacau e tabaco, assim como a construção de fortalezas militares ao norte do país, dependeram diretamente da mão de obra negra e escrava, explicou Schwarcz.
Escritora premiada, ela lançou em março a Enciclopédia Negra, que lista 550 protagonistas negros da história brasileira – ativistas revolucionários, profissionais liberais e líderes religiosos que foram apagados pela historiografia oficial.
Uma maneira de mudarmos esse país é atacando nosso imaginário. A História é branca, colonial e sudestina, e a presença das populações negras foi sistematicamente negada na Amazônia”
Lilia Schwarcz, antropóloga, historiadora e professora da Universidade de São Paulo (USP)
Outra presença marcante no debate foi da economista Marcela Bonfim, que hoje atua como fotógrafa e artista visual em Porto Velho, Rondônia. Mulher negra, Marcela se dedica ao projeto (Re)conhecendo a Amazônia Negra: povos, costumes e influências negras na floresta, no campo da antropologia visual, que versa sobre a constituição e memória da população negra brasileira na região amazônica. Explica que, antes de chegar a Rondônia, em 2010, seu imaginário sobre a Amazônia se restringia à “natureza selvagem, ao índio, ao nada”. No entanto, segundo ela, foi na Amazônia que iniciou um processo de tomada de consciência sobre a própria identidade.
O diretor-executivo da Climate Policy Initiative Brasil (CPI) e professor do departamento de Economia da PUC-Rio, Juliano Assumpção, compartilhou do andamento do Projeto Amazônia 2030, iniciativa de pesquisadores para desenvolver um plano de ação econômica e socioambiental para a região nesta década. Assumpção enfatizou o entendimento de determinantes históricos como ponto de partida para qualquer discussão sobre a Amazônia. “O objetivo é pensar possibilidades a partir do potencial que é próprio da Amazônia, não de modelos externos”, explica.
Segundo ele, a região sofreu um processo de ocupação artificial, baseado em atividades apartadas de sua vantagem comparativa natural, que é a própria floresta. Ele explica que os mercados de pimenta, castanha, palmito, cacau e abacaxi, dentre outros produtos nativos amazônicos, são subaproveitados no Brasil, e geram um volume de receitas bastante inferior ao potencial identificado. Hoje, países como Bolívia, Peru, Vietnã, Costa do Marfim e Gana dominam essas cadeias.
Ainda de acordo com o pesquisador, os estudos já realizados pelo Amazônia 2030 mostram que a informalidade na Amazônia é superior à verificada em todo o país, e que mesmo os vínculos formais de trabalho têm mais chance de serem desfeitos em um curto espaço de tempo, também na comparação com o cenário nacional. As pesquisas revelam, ainda, que parte significativa da renda que circula nos estados amazônicos tem origem em programas sociais ou no funcionalismo público. Agora, essa análise será aprofundada pelo projeto em nível regional e setorial pelo CPI.
O encontro contou ainda com a presença do documentarista, fundador e editor da revista Piauí, João Moreira Salles, que acaba de encerrar uma aclamada série de artigos sobre a Amazônia, Arrabalde, publicada em seis partes pela Piauí. Moreira Salles passou cinco meses no Pará, estado que, segundo ele, “encerra boa parte das contradições da Amazônia”, onde convivem o agronegócio moderno e sustentável, práticas produtivas devastadoras e imensas unidades de conservação.
Para o documentarista, o Brasil não foi capaz de produzir uma ideia sobre a floresta, e agiu para substituí-la por outra coisa.
Não soubemos incorporar a floresta à vida de quem está lá e à nossa imaginação de brasileiros”
João Moreira Salles, fundador e editor da revista Piauí
Nesse sentido, o baixo desenvolvimento socioeconômico e a permanente destruição ambiental são resultado direto, diz ele, da ausência simbólica da Amazônia no Brasil.
“Como fazer com que a floresta seja incorporada simbolicamente à nossa ideia de nação? Como fazer a floresta parte do que nós somos? Como a agressão à floresta pode se tornar uma agressão à ideia de ser brasileiro?”, indaga, em referência à escalada do ritmo de desmatamento da região nos últimos dois anos. “Não existe desafio maior para os brasileiros vivos no século XXI que o de tentar proteger a Amazônia. É a tarefa que nos foi imposta pela História, e temos que estar à altura disso”, completa.