A COP da Biodiversidade, que aconteceu em dezembro passado, em Montreal, no Canadá, terminou com a criação de um histórico Marco Global da Biodiversidade (de Global Biodiversity Framework, ou GBF, na sigla em inglês) que deve nortear as ações, mundialmente, pela conservação e recuperação da natureza nos próximos anos.
O GBF, ratificado entre quase 200 países signatários da Convenção da Diversidade Biológica da ONU, tem sido chamado de “Acordo de Paris da natureza”. Isso porque os compromissos para frear e reverter a perda da biodiversidade são tão relevantes para o bem-estar das pessoas e para a sobrevivência de todos os seres vivos do planeta quanto são os compromissos para enfrentar as mudanças climáticas.
“O resultado da COP foi positivo, pois chegou-se a um acordo mundial, por mais que existam críticas em relação a ele. Se fizermos um paralelo com o Acordo de Paris e a agenda das mudanças climáticas, podemos ver o GBF como um novo ponto de partida para organizar as ações pela biodiversidade”, afirma Thais Ferraz, co-diretora executiva do Instituto Arapyaú. “Os desafios são igualmente parecidos: garantir que as metas sejam cumpridas, que haja financiamento e recursos. Além disso, os resultados precisam ser verificáveis”, destaca.
Entre as metas mais comentadas no acordo, a serem cumpridas até 2030, estão a de ampliar áreas protegidas no mundo para 30% e a de recuperar e restaurar 30% dos ecossistemas degradados. Há ainda metas relacionadas ao combate à poluição, a práticas agrícolas sustentáveis e à transparência com relação ao reporte dos impactos das atividades das empresas na natureza, entre outras.
Um ponto que gerou bastante discussão foi sobre os recursos financeiros necessários para fazer a conservação acontecer. No acordo, os países desenvolvidos se comprometeram a direcionar US$ 20 bilhões por ano até 2025 e US$ 30 bilhões até 2030 para os países em desenvolvimento. No total, os recursos dedicados à proteção da natureza devem chegar a US$ 200 bilhões até 2030, de diferentes fontes, incluindo recursos públicos e privados. O montante, porém, ainda está abaixo dos US$ 700 bilhões que se estima serem necessários para frear a perda da biodiversidade.
Houve, ainda, um importante passo em relação ao uso de informações de sequenciamento genético de espécies de plantas e animais, um conceito chamado de DSI (do inglês Digital Sequence Information). Pelo acordo, será estabelecido um fundo multilateral para a repartição equitativa de benefícios entre provedores e usuários de DSI. O desenho desse fundo – como ele funcionará de fato – será finalizado na próxima COP da Biodiversidade, que acontecerá na Turquia, em 2024, para que seja implementado até 2030.
O tema do DSI era considerado um “bode na sala”, por ser peça fundamental para destravar outras discussões da COP, sendo alvo de muitos impasses. Por isso, a definição da criação de um fundo dentro de um sistema multilateral foi uma conquista, na opinião de Henry Novion, consultor do Arapyaú e especialista em DSI que acompanhou as negociações.
Finalmente os países desenvolvidos sinalizaram um entendimento de que é preciso repartir benefícios, e o caminho adotado pela Convenção foi discutir isso no âmbito multilateral. O trunfo é a construção desse espaço, indicando que é um discurso legítimo. Outro ponto relevante é que a decisão expressa que os benefícios devem ser dirigidos principalmente a povos originários e comunidades tradicionais.”
Henry Novion, consultor do Arapyaú
Para Thais Ferraz, outro destaque desta COP foi a mobilização do setor privado e da sociedade civil brasileira. “As empresas apresentaram iniciativas relacionadas à conservação da biodiversidade e preocupadas em melhorar a transparência e mensuração de seus impactos na natureza. E a sociedade civil, em especial os povos originários, foi muito ativa, vocalizando suas demandas por maior ambição no acordo”, afirma.
No final da COP, o Brasil foi eleito presidente do bloco de países megadiversos com posições afins na Convenção da Diversidade Biológica, à frente de outros 17 países em desenvolvimento, que incluem República Democrática do Congo, África do Sul, Indonésia, Malásia, Colômbia, Peru e China, entre outros. Juntos, detêm entre 60% e 70% da biodiversidade do mundo. Um dos objetivos do Brasil será fazer com que o bloco ganhe destaque na implementação do novo marco global da biodiversidade.
O GBF traz oportunidades para o país, na avaliação de Roberto Waack, cofundador da iniciativa Uma Concertação pela Amazônia e presidente do Conselho do Instituto Arapyaú. Waack destaca iniciativas relacionadas à bioeconomia que mantêm a floresta em pé e valorizam a sociobiodiversidade e outras que podem se beneficiar de mecanismos de pagamento por serviços ambientais. “É preciso equilibrar riscos e oportunidades que o acordo traz e, para um país como o Brasil, com tantas atividades econômicas baseadas no uso da terra e tão biodiverso, as oportunidades são muito relevantes.”
Para Henry Novion, o Brasil tem vantagens também no campo do DSI, porque a legislação do país está alinhada ao mecanismo de repartição de benefícios, com fundo específico para a destinação de recursos para conservação e para povos originários, e as empresas brasileiras estão habituadas a esse modelo. “Isso estimula que haja aumento de pesquisas de espécies de origem brasileira”, afirma.
Para Thais Ferraz, é preciso lembrar da meta da GBF para restauração de ecossistemas, que conecta os desafios do clima e da biodiversidade de forma bastante direta. “É muito importante promover uma restauração que una o olhar sobre a conservação da biodiversidade e sobre o sequestro de carbono”, afirma.
Mecanismos como pagamento por serviços ambientais e créditos rurais sustentáveis, a exemplo do que já ocorre com produtores de cacau no sul da Bahia, onde o Arapyaú está presente, trazem muitas oportunidades para regiões como a Mata Atlântica e a Amazônia. Vale lembrar que, na COP da Biodiversidade, a Mata Atlântica foi um dos biomas apresentados como referência em restauração e, portanto, apta a receber da ONU recursos e apoio técnico.”
Thais Ferraz, co-diretora executiva do Instituto Arapyaú
O marco global, porém, terá desafios para sua implementação. “Com relação à meta de 30% de áreas protegidas, por exemplo, o Brasil pode contribuir para alcançar esse número devido ao seu vasto território, mas é preciso que as áreas protegidas estejam de fato implementadas, com plano de manejo e fiscalização”, destaca Roberto Waack. “Além disso, o país, que nos últimos anos registrou recordes de desmatamento na Amazônia e viu o enfraquecimento de órgãos de fiscalização e políticas ambientais, precisará solucionar essas questões para avançar na conservação da biodiversidade.”