Em 2007, quando a bióloga Adriana Reis concluía seu mestrado em genética e biologia molecular na Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), os produtores de cacau da Bahia ainda tentavam superar os traumas deixados pela praga da vassoura-de-bruxa. A cientista era um personagem quase solitário na cena do cacau de qualidade.
Dez anos depois, ela se associava ao também biólogo Cristiano Vilela e ao farmacêutico Samuel Saito para criar o Centro de Inovação do Cacau (CIC), uma instituição sem fins lucrativos que nasceu em um projeto de incubação, dentro da UESC, com a missão de devolver à região a reputação de produtora de cacau premium. Juntando ciência com prestação de serviços, iniciaram um “trabalho de formiguinha” — como costumam dizer os fundadores — que vem promovendo uma revolução silenciosa no campo e nas prateleiras.
Os resultados desse trabalho são concretos. No começo, a instituição atendia pouco menos de vinte agricultores de médias propriedades rurais e apenas uma pequena parte das amostras de amêndoas que chegavam ao laboratório atingiam o perfil de fermentação que as marcas de chocolate compradoras classificam como cacau premium. Hoje, apenas seis anos depois, mais de mil produtores levam suas amostras para o CIC e a maioria das amêndoas já atende ao perfil de qualidade.
O número de marcas de clientes que procuram o Centro também só cresce, fortalecendo o foco do projeto, que é ser a ponte entre quem produz cacau de qualidade e compradores que estão em busca do melhor cacau para desenvolver seus produtos. Só no CHOCOLAB (laboratório de produção de chocolate, a partir da amêndoa de cacau), já são mais de 32 marcas de chocolates que processam com o CIC para desenvolver produtos especiais com amêndoas de alta qualidade certificadas.
“Não fazemos só ciência e também não só atuamos no mercado. O CIC é o lastro técnico que valida o cacau brasileiro para o mercado especial de qualidade”
Adriana Reis, gerente de qualidade do CIC
A organização se mantém atualmente com recursos vindos de doações, financiamentos e do apoio de instituições filantrópicas, mas caminha para a autossuficiência com o crescimento no número de clientes. O Instituto Arapyaú teve um papel importante nesse sentido, já que foi uma das instituições responsáveis pela incubação, captação de recursos e suporte administrativo desde o começo da trajetória do CIC. “Nós nascemos para caminhar com as próprias pernas, e para que pudéssemos ser um projeto autossuficiente no futuro. Mas somos um projeto de médio/longo prazo e temos objetivos muito ambiciosos, entendemos que para alcançá-los pode demorar um pouco mais. O apoio de instituições como o Arapyaú ainda é essencial”, diz Adriana.
O laboratório se dedica a fazer análises variadas em amêndoas de cacau e chocolate: físico, químico, sensorial, microbiológico, de metais pesados, metilxantinas etc. São testes que demonstram e comprovam a qualidade, detectam defeitos, classificam e avaliam a fermentação, medem nível de acidez, percentual de gordura, índice de oxidação de gordura e vários outros. O produtor recebe laudos com informações completas sobre os seus lotes de produção, com orientações de técnicos do CIC para melhorar a qualidade das amêndoas.
Uma das principais bandeiras da instituição é melhorar a reputação do cacau brasileiro no exterior e consolidar o país em uma posição de destaque no mercado premium internacional. E isso já está sendo feito. Graças a uma parceria do CIC com a Secretaria de Planejamento e Assuntos Econômicos (Seplan), em abril de 2019, por exemplo, o Brasil foi oficialmente reconhecido pela Organização Internacional do Cacau (ICCO, na sigla em inglês) como país exportador de 100% de cacau fino e de aroma. O banco de dados fruto das análises tocadas pelo laboratório serviu de base para comprovar a qualidade da produção brasileira.
Na leitura de Adriana, o maior valor do CIC é o banco de dados acumulado, que entrega diversas informações em tempo real e um panorama rico da produção do cacau de qualidade do Brasil. É a partir dessa inteligência que, além da consultoria técnica com análises das amêndoas de cacau, o centro tem outras duas linhas de atuação: treinamentos e searching estratégico.
O plano inicial de criação do CIC não previa a oferta de capacitações, mas a gerente explica que, diante do volume de informações que era produzido no laboratório e da ausência de conhecimento técnico encontrada na cadeia do cacau, partilhar as tecnologias e as inteligências geradas era mais do que uma oportunidade, mas um dever da instituição.
“Ao longo da nossa trajetória, pautamos várias inovações de metodologias, como analisar a acidez e PH dos laudos, por exemplo, o olhar para a parte microbiológica, entre várias outras. Por meio dessas inovações, criamos modelos que poderiam ser replicados”, explica Adriana. O CIC oferece hoje capacitações e treinamentos, voltados aos produtores, outras instituições e empresas do setor.
A segunda linha de atuação é o chamado searching estratégico. Na prática, o CIC faz uma busca entre os produtores por perfis de qualidade, que correspondam às demandas de cada uma das marcas clientes, e intermedia a negociação.
O impacto desse serviço na renda de pequenos produtores é relevante. As famílias, que antes não tinham acesso a esse mercado premium, passam a vender cacau para marcas que pagam até três vezes mais que o valor cotado em bolsa no mercado internacional.
Apesar de a sustentabilidade não entrar nos critérios da avaliação de qualidade das amêndoas — que considera apenas aspectos técnicos —, Adriana ressalta que o que torna o Brasil mais competitivo no mercado internacional é a forma de produção que respeita os biomas. Na Bahia, cerca de 60% do cacau é cultivado no sistema cabruca, em que os cacaueiros crescem à sombra de árvores nativas da Mata Atlântica.
Produções mais sustentáveis também são uma demanda de quem consome: 74% dos brasileiros se dizem “consumidores ambientalmente conscientes”, segundo levantamento da Confederação Nacional da Indústria (CNI) de 2022, por exemplo. Mas além do mercado, empresas de chocolates e consumidores, o discurso sustentável já fazia parte da vida do produtor, afirma Adriana. “O cacau no Brasil passa pelo amor à mata. Para cortar qualquer árvore na roça, o produtor vai morrer de chorar primeiro, porque ele ama a floresta. Ele quer produzir, mas quer produzir deixando a floresta em pé”. Há duas edições, o CIC passou a colocar a sustentabilidade como um dos critérios de avaliação do Concurso Nacional de Cacau Especial do Brasil, que elege o melhor cacau do país. “Não adianta avaliar só o sabor e a qualidade técnica e, quando chegarmos na fazenda, ter o sabor amargo de uma produção que degrada, com desmatamento ilegal, com péssimas relações sociais com os trabalhadores, crianças fora da escola etc. Isso não gera qualidade e não torna o país competitivo lá fora”, diz.