Implantado no sul da Bahia com a ajuda do Arapyaú, financiamento que combina capital de mercado com filantropia trouxe aumento de produtividade e teve inadimplência quase zero.
Quando ouviu falar pela primeira vez que haveria um crédito para produtores do assentamento onde vive, Luciana Gonçalves dos Santos (na foto) não parou de fazer perguntas e de anotar contas no seu caderninho. Moradora de Dois Riachões, na região sul da Bahia, Luciana nunca havia feito um financiamento na vida. “Na minha mente eram mil coisas ao mesmo tempo. Mas só quando entendi que podia pagar de seis em seis meses, eu me convenci”, conta. Com 44 anos, a agricultora passou boa parte da vida morando na cidade, trabalhando em casas de família. Em 2015 foi aceita na comunidade e passou a plantar em seu quintal praticamente tudo o que come. Hoje, mais de um ano depois, Luciana segue pagando em dia as parcelas. Usou os recursos para comprar insumos e investir na produção do cacau de qualidade. Junto com sua comunidade, ela fornece para a Dengo Chocolates, para a Amma Chocolate, além da própria marca de chocolate de Dois Riachões. “Cacau de qualidade é que nem um bebê: o bichinho é folgado, mas vale a pena.”
Pela primeira vez no Brasil, lavouras como a de Luciana entraram no mapa do mercado de capitais. Ela foi uma das 184 pessoas beneficiadas pelo primeiro CRA (Certificado de Recebíveis do Agronegócio) sustentável do Brasil, financiamento que combina capital de mercado com filantropia e foi concebido em parceria pela ONG Tabôa, os institutos Arapyaú e humanize e o Grupo Gaia. Um ano após ser implantado, a iniciativa traz resultados surpreendentes para a cadeia de valor do cacau. Relatório feito pela Tabôa aponta uma melhora de 38,9% na renda bruta média dos agricultores familiares que acessaram crédito na primeira rodada. O resultado é explicado pelo aumento da produtividade — que cresceu em média 36,2% — e da produção para o mercado de qualidade do cacau. Entre os que produziram cacau de qualidade, que é vendido com um prêmio sobre o preço da commodity no mercado, esse incremento foi ainda maior: 58,6%, em média.
O CRA foi concebido a partir do modelo de blended finance, uma mescla de recursos de investidores do mercado e de organizações filantrópicas, que contribuem para a viabilidade econômica da operação. Os recursos, da ordem de R$ 1,37 milhão, foram repassados a 184 produtores do sul da Bahia. “O blended finance vem ganhando espaço no mundo inteiro, pois mitiga riscos e consegue atrair investidores tradicionais para operações socioambientais, que costumam dar retornos de longo prazo e têm desafios sociais e ambientais complexos para lidar”, afirma Thais Ferraz, diretora executiva do Arapyaú (leia a entrevista com Thais sobre o tema). “Com esse programa, queremos melhorar a qualidade de vida no campo, estimular a produção de cacau de qualidade e proteger a sociobiodiversidade, o que está se mostrando viável”.
Boa parte dos que acessaram os recursos nunca havia tomado crédito antes. “O CRA não foi feito para substituir as políticas públicas de financiamento rural, mas sim como uma demonstração de que é possível criar processos mais inclusivos e simplificados de acesso ao crédito e ao mesmo tempo garantir baixa inadimplência”, afirma Roberto Vilela, diretor executivo da Tabôa, que oferece crédito e formação a pequenos empreendedores e agricultores, fortalecimento de organizações de base comunitária e apoio a projetos socioambientais. A inadimplência foi quase zero (0,48%), muito abaixo dos parâmetros usados para estruturar o projeto. “Esse resultado surpreendeu o mercado financeiro, demonstrando condições de atingir escala.”
Uma soma de fatores explica a baixa taxa de inadimplência: a inclusão de assistência técnica (um técnico para cada 60 agricultores), que permite um acompanhamento próximo e um uso correto dos recursos; a possibilidade de pagamento semestral, de acordo com a safra do cacau; e as garantias solidárias, adotadas nos créditos coletivos.
Todos os agricultores produzem o cacau no sistema cabruca, em que o fruto é cultivado à sombra das árvores, mantendo a Mata Atlântica em pé. Além do estoque de carbono, as cabrucas contribuem para a manutenção da biodiversidade e a oferta de água.
O programa incentivou também o empoderamento socioeconômico na agricultura familiar, com a inclusão de mulheres, jovens e assentados. Do total de beneficiados, um terço era formado por mulheres e 75% por assentados rurais.
A operação é pioneira na emissão de CRA Sustentável. Para ser considerado sustentável, um título atende a critérios e protocolos e precisa financiar ações que contribuam para o alcance dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU). “O CRA Sustentável é um exemplo de como olhar risco x retorno e agregar impacto à conta — e por isso investidores cientes dessa responsabilidade abraçaram o projeto”, explica João Paulo Pacífico, do Grupo Gaia.
O CRA é uma iniciativa inspiradora que, ainda em escala piloto, superou todas as expectativas, suscitando interesse imediato de investidores de impacto, conquistando a confiança dos agricultores e entregando resultados sem precedentes, com uma operação extremamente bem sucedida do ponto de vista financeiro e transformando vidas no campo.”
Ana Carolina Avzaradel Szklo, gerente de Sustentabilidade do Instituto humanize
Leia aqui o relatório completo do CRA, produzido pela Tabôa.
Destaque na plataforma Capital Reset.
Matéria do Valor Econômico: CRA sustentável eleva renda de agricultores familiares em 40% na BA.