Deborah Faria é bióloga, com mestrado e doutorado em ecologia. Desde 2002, é professora da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). Ela foi uma das idealizadoras do Programa de Pós-graduação em Ecologia e Conservação da Biodiversidade, reconhecido com nota 6 pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). “Estamos a um ponto de nos tornarmos referência mundial”, explica. A escala de pontuação da CAPES é de 1 a 7 e reconhece os cursos de pós-graduação e doutorado do Brasil.
No mês da Mata Atlântica e da biodiversidade — em maio é celebrado Dia Nacional da Mata Atlântica (27) e o Dia Internacional da Biodiversidade (22) —, Deborah falou sobre o sistema agroflorestal cabruca e a sua importância para a conservação do bioma e da diversidade biológica no sul da Bahia, um dos territórios de atuação do Instituto Arapyaú. Ela coordenou uma extensa pesquisa sobre ecologia e conservação na região cacaueira, responsável pelo primeiro inventário de biodiversidade em 36 áreas de florestas e cabrucas do estado, chamado Projeto Restauna.
Segundo dados do SOS Mata Atlântica, a Bahia é a campeã em desmatamento do bioma e a prioritária quando o assunto é restauração, já que nas florestas restantes estão espécies ameaçadas de extinção e que não são encontradas em nenhum outro território. Em entrevista ao Instituto Arapyaú, a bióloga também revela caminhos possíveis para reverter a perda da biodiversidade, encontrados em pesquisas da UESC. Leia mais:
O cacau é uma planta originalmente de sub-bosques da floresta, então precisa de um pouco de sombra — tanto para se estabelecer quanto para se manter. Em outras regiões, o cacau é plantado depois que toda a floresta é desmatada e, eventualmente, se plantam algumas árvores para sombrear. A cabruca é especial por causa disso. Ela cria o que a gente chama de “estrutura espacial complexa”, em que todas as camadas da floresta são mantidas e o sub-bosque é formado pelo cacau. Nossa pesquisa mostrou que a cabruca consegue ser habitat para pelo menos dois terços das espécies animais na Mata Atlântica, mas a verdadeira fonte de biodiversidade é a floresta. Uma plantação de cacau no sistema cabruca, perto ou inserida em uma paisagem com bastante floresta, terá muitas espécies. Se tiver pouca floresta em volta, também terá poucas espécies.
Exatamente. Não podemos esquecer que a cabruca é um sistema produtivo. A manutenção dessa diversidade biológica é um subproduto da floresta e desse sistema. Agora que uma grande parte Mata Atlântica já foi perdida, a cabruca passa a ter um valor de conservação muito grande, porque ela consegue reter uma parte da biodiversidade que em outros usos da terra você não teria. É um sistema amigável para a biodiversidade, mas que por si só não vai manter as espécies da floresta. O valor de conservação de uma cabruca depende da paisagem.
A cabruca tem vários outros serviços ambientais. Existem processos ecológicos que acontecem dentro desse sistema que inclusive ajudam a própria plantação. Graças à sombra das árvores, é mantida uma população de aves e morcegos que comem insetos que poderiam virar pragas, por exemplo. Outro dado importante vem de uma pesquisa que publicamos no ano passado. Fizemos uma modelagem tentando mostrar como vai estar o clima da região até 2050, considerando as mudanças climáticas. Simulamos duas situações: se as plantações de cacau continuassem a ser sombreadas, ou se fossem a pleno sol — que é uma tendência para o aumento de produção. De forma geral, a adequabilidade climática da região para o cultivo do cacau vai reduzir; terá um aumento de temperatura, menos chuvas e outra série de mudanças. A manutenção das plantações no sistema cabruca vai garantir uma menor perda de adequabilidade climática para a região. Além disso, estimamos que as cabrucas atualmente mantenham cerca de 60% do carbono acima do solo estocado na região. Ou seja, elas hoje têm um papel mais importante para manter o estoque de carbono regional do que as florestas, que infelizmente estão em menor quantidade e estão cada vez mais perturbadas.
Em uma pesquisa recente, descobrimos que, quanto mais desmatado fica o entorno das florestas da Mata Atlântica, mais elas ficam colapsadas. Ou seja, elas estão encolhendo em estrutura. O que antes eram florestas maduras — bem características daquilo que conhecemos como Mata Atlântica — está se secundarizando cada vez mais. O fato de ter uma grande quantidade de área aberta ao redor dela está provocando um colapso silencioso. As árvores adultas estão produzindo sementes, mas as plantas filhotes não conseguem dar sequência à espécie. Assim, as árvores começam a morrer e não são repostas e há uma perda significativa de biodiversidade.
A floresta também não está funcionando do mesmo jeito. Ao invés de ser fonte de sequestro de carbono, está virando uma fonte de carbono. A temperatura média da floresta aumenta, modificando a ciclagem de nutrientes e assim o carbono começa a se degradar e ser emitido. Existem grupos de estudo em Pernambuco analisando a Mata Atlântica e mostrando que a floresta que resta por lá praticamente não é mais madura, é quase toda secundária. É como se fosse a Bahia amanhã.
Se tudo continuar como está, se não aumentarmos a quantidade de floresta na paisagem, é isso que vai acontecer. Ainda existe a oportunidade de reverter, porque existem diferentes paisagens no território e conseguimos detectar o que está acontecendo antes. Mas a Mata Atlântica, apesar de ser protegida, ainda está sendo bastante desmatada. Segundo o SOS Mata Atlântica, por exemplo, o sul da Bahia foi uma das regiões que proporcionalmente mais desmatou o bioma nos últimos anos. Alguns municípios foram campeões de desmatamento. Infelizmente, se nada for feito, a floresta vai se secundarizar completamente e vamos perder tanto em biodiversidade quanto em serviços ambientais.
Temos a oportunidade de trazer de volta ou até manter a diversidade biológica antes de ser perdida. O Instituto Arapyaú está fomentando uma discussão importante nesse sentido: a restauração florestal. É preciso restaurar parte de nossas paisagens com florestas ou até mesmo com sistemas agroflorestais que sejam amigáveis à biodiversidade, como é o caso da cabruca. O sul da Bahia é exemplo de que é possível manejar sistemas produtivos, aliando a produção de commodities à conservação da biodiversidade.
Para se ter uma ideia, mapeamos a distribuição espacial de mais de 8 mil árvores adultas de 240 espécies nativas que poderiam ser exploradas em cabrucas e em florestas como uma fonte de restauração. No caso das cabrucas, sabemos que hoje em dia estão muito abandonadas como sistema produtivo, mas existem iniciativas de recuperação. De forma geral, precisamos entrar na economia do século XXI e fomentar a bioeconomia. O sistema tem que ser produtivo, mas também tem que ser aliado da sustentabilidade.