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Passado, presente e o futuro do cacau sustentável brasileiro: uma conversa com Ricardo Gomes

Ricardo Gomes, gerente do programa Desenvolvimento Territorial do sul da Bahia. Crédito: Ana Lee

Após décadas de crise, o cacau brasileiro vive um novo auge. No momento em que virou estrela do horário nobre da Rede Globo, no remake da novela Renascer, ganhando visibilidade em milhares de lares, os produtores nacionais passam a ser cada vez mais reconhecidos pela qualidade, ao mesmo tempo em que o valor da commodity atinge o maior patamar em 40 anos no mercado internacional.

A trajetória de ascensão do cacau não foi rápida nem simples. Originário da região amazônica, por séculos teve seu cultivo concentrado principalmente na Bahia, onde as condições climáticas e de solo tornaram-se ideais para seu desenvolvimento. No entanto, a produção enfrentou desafios nas últimas décadas, incluindo doenças que afetaram as plantações, como a praga da vassoura-de-bruxa, e a concorrência crescente de outros países produtores, como Costa do Marfim e Gana, atuais líderes na produção de cacau. Hoje, o Brasil ocupa a sétima posição entre os maiores produtores mundiais, com uma produção estrategicamente aliada à sustentabilidade.

Em 26 de março, celebrou-se o Dia do Cacau, uma data simbólica para quem trabalha para que o fruto brasileiro ganhe o mundo com qualidade. Integrante da quinta geração de produtores da Bahia, o engenheiro agrônomo e cacauicultor Ricardo Gomes conhece a história do cacau como poucos. Com seu trabalho como gerente de Desenvolvimento Territorial do Instituto Arapyaú e presidente da Agência de Desenvolvimento Regional do Sul da Bahia (ADR), ele se compromete com a missão do Arapyaú de impulsionar o sul da Bahia a ser uma referência brasileira de desenvolvimento sustentável, com ações de redução de desigualdades por meio da busca de suas potencialidades e vocações, sobretudo a cacauicultura.

Nesta entrevista, ele fala da importância do cacau brasileiro ao destacar suas origens, seus desafios e suas potencialidades. Comenta as tendências do setor e como a atual produção sustentável pode contribuir para o Brasil ganhar mais espaço no mercado internacional nos próximos anos, com uma qualidade superior diretamente associada ao cacau verde.

Cacau sustentável pode contribuir para o Brasil ganhar mais espaço internacional.
Crédito: Ana Lee

A Bahia por muito tempo representou a cacauicultura do Brasil até a vassoura-de-bruxa praticamente dizimar as plantações. Como era feita essa produção antes e as lições que a praga deixou para os produtores?

Desde a primeira metade do século 20 até o final dos anos 1980, o Brasil figurava entre os três maiores produtores mundiais de cacau. O “fruto de ouro”, como descreveu Jorge Amado em sua obra São Jorge dos Ilhéus (1944), garantiu décadas de fartura e extravagâncias aos “coronéis do cacau” de Ilhéus e mais 82 municípios dos arredores. O ápice da safra nacional aconteceu em 1986, quando a Bahia, sozinha, produziu quase 400 mil toneladas do fruto, representando 86% do total do País.

A produção era caracterizada por métodos tradicionais de cultivo, onde as árvores de cacau eram plantadas sob a sombra de árvores mais altas da Mata Atlântica. Esses métodos, combinados com as condições climáticas favoráveis e o solo rico, resultaram em uma produtividade significativa, pelo menos até a chegada da praga da vassoura-de-bruxa, em 1989. Muitas propriedades se tornaram improdutivas – abandonadas após a vassoura – por meio da reforma agrária, que a cacauicultura no sul da Bahia passou a contar com pequenos agricultores familiares.

As lições deixadas pela praga da vassoura incluem a importância da diversificação de culturas para reduzir o risco de perdas catastróficas devido a doenças ou pragas. Além disso, a necessidade de práticas agrícolas sustentáveis e de gestão integrada de pragas foi enfatizada, a fim de prevenir e controlar futuros surtos de doenças, como a Monilíase, cujo fungo já foi detectado no norte do Brasil. Muitos produtores também passaram a adotar variedades de cacau mais tolerantes à vassoura-de-bruxa e implementaram medidas de controle mais eficazes para proteger suas plantações. Essa experiência serviu como um lembrete da vulnerabilidade da agricultura a doenças e pragas e destacou a importância da inovação e da adaptação contínua na produção agrícola.

O que difere o novo ciclo do cacau da cacauicultura feita antes?  

No passado, a ênfase estava na produção e na resposta exclusiva às demandas do mercado de commodities. Hoje, a região ressurge no cenário nacional como zona cacaueira, porém com um direcionamento mais concentrado na produção de amêndoas de alta qualidade, visando a inserção em um mercado diferenciado e a busca por melhores preços. Além disso, atualmente, almejamos a valorização do sistema de produção sustentável, especialmente os Sistemas Agroflorestais (SAFs), que, em nosso caso, é o sistema Cabruca.

Observa-se uma mudança na estrutura fundiária, com a redução das grandes propriedades, uma vez que mais de 80% da produção de cacau no sul da Bahia hoje é proveniente de agricultores familiares de pequenas propriedades. Isso demonstra um novo momento positivo da conjuntura social da região.

Neste novo contexto, há uma consciência ampliada em relação à conservação ambiental, juntamente com a busca por mecanismos que viabilizem o pagamento por serviços ambientais. Esses mecanismos promovem a valorização da forma de produzir cacau, seja pelo modelo SAF tradicional ou a própria Cabruca. A valorização se dá de duas formas: pela qualidade das amêndoas, aliada ao incremento da produtividade, e pela crescente conscientização ambiental, onde produção e conservação são intrinsecamente ligadas e precisam ser reconhecidas e monetizadas.

Hoje o cacau está mais sustentável e há uma reinvenção que contempla o manejo de florestas para garantir essa produtividade. Como essa transformação aconteceu? 

Na verdade, não se trata de um manejo florestal, mas sim de um manejo racional que considera os aspectos legais pertinentes. Estou me referindo ao Decreto da Cabruca, uma legislação que estabelece regras e diretrizes para o manejo sustentável desse sistema produtivo. O decreto permite o manejo de espécies arbóreas exóticas para garantir a luminosidade adequada, possibilitando maior adensamento de cacaueiros por hectare, visando a atingir uma produtividade ideal. Portanto, estamos falando de um manejo da sombra dentro do sistema de produção da Cabruca.

Essa abordagem não apenas promove a manutenção das florestas, mas também contribui para a conservação da biodiversidade da Mata Atlântica e dos remanescentes florestais deste bioma.

Quais são os números de produção do Brasil e da Bahia no mercado do cacau atualmente?  

De acordo com dados da Associação Nacional das Indústrias Processadoras de Cacau (AIPC), a produção brasileira de cacau em 2023 foi de cerca de 220 mil toneladas, sendo a Bahia responsável por 61,9% do volume total de amêndoas nacionais adquiridas pelas processadoras. Já a produção mundial, conforme a International Cocoa Organization (ICCO), atingiu 4,95 milhões de toneladas no ciclo 2022/23, menor que a produção do ciclo anterior, que foi de mais de 5 milhões de toneladas. Desse montante, o Brasil foi responsável por apenas 4,43%, o que o coloca na sétima posição entre os países produtores de cacau no mundo.

Mas nosso país tem potencial para se tornar novamente um dos principais produtores de cacau do mundo, aproveitando áreas com oportunidades latentes, como as de pastagens subutilizadas. Estima-se que existam cerca de 160 milhões de hectares de pastagem no país, eliminando a necessidade de desmatamento adicional. Essa realidade oferece uma oportunidade única para restaurar essas áreas a partir da implementação de sistemas agroflorestais com cultivo de cacau, ampliando assim os esforços de produção.

A meta estabelecida pelo governo brasileiro por meio da CEPLAC no Plano Inova Cacau 2030 é ambiciosa: alcançar a produção de 400 mil toneladas até 2030, o que colocaria o Brasil em destaque como o quarto maior produtor global. Além disso, a busca é por uma posição de liderança não apenas em volume, mas também em qualidade e sustentabilidade na produção de cacau. Este objetivo já está sendo trabalhado em projetos e iniciativas que visam a consolidar o Brasil como uma referência mundial nesse sentido.

O que é tendência no setor?  

Além da produção de amêndoas de alta qualidade destinadas à fabricação de chocolates finos – que, embora representem atualmente menos de 5% da produção nacional de cacau, têm um impacto significativo no mercado devido a sua qualidade superior -, destaca-se indiscutivelmente a sustentabilidade na produção. A importância desse aspecto é evidenciada pelo movimento da União Europeia em direção à implementação do Regulamento para Produtos Livres de Desmatamento (EUDR), previsto para entrar em vigor no próximo ano, quando só poderão importar commodity agrícola livre de áreas de desmatamento.

A tendência é buscar um aumento no volume de produção, com a meta de alcançar 400 mil toneladas até 2030. Isso envolve não apenas a restauração de áreas de pastagem por meio de sistemas agroflorestais, mas também o aprimoramento das áreas tradicionais, como as cabrucas, visando a aumentar a produtividade. O objetivo é posicionar o Brasil como um país de referência na produção sustentável e de alta qualidade, como evidenciado recentemente pelas duas medalhas de ouro e uma de prata conquistadas no concurso mundial de cacau de excelência, o CoEx, realizado no mês passado em Amsterdã durante a conferência mundial de cacau.

A ênfase recai também na promoção da bioeconomia do cacau brasileiro e no reconhecimento de que esta é uma atividade que envolve soluções baseadas na natureza. A produção de cacau em sistemas agroflorestais não só garante a manutenção dos serviços ecossistêmicos, mas também proporciona oportunidades de inclusão socioeconômica, promovendo melhorias na renda dos envolvidos. Este modelo serve como exemplo para o mundo, demonstrando como é possível conciliar o desenvolvimento econômico com a conservação ambiental e a inclusão social.

Giulie Carvalho

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